De ficção em ficção


Somos uma espécie engraçada. Muito mais do que alimentos o somos alimentados pelas nossas narrativas. Vivemos de ficção em ficção. Às vezes chego a pensar que o trabalho do historiador é organizar documentos, testemunhos e outras peças históricas para criar ficções que possam nos dar uma origem e sentido ao presente.


Não quero menosprezar o trabalho dos historiadores ou qualquer cientista cujo ofício seja o de reconstruir o passado tanto da humanidade quanto do nosso planeta ou do universo. A verdade, no entanto, é que vivemos da construção e reconstrução de narrativas e mitos. Um bom exemplo desta afirmação é a revisão constante do mito do alimento saudável.



Na memória de muitos pode vir algumas das páginas de 1984, romance escrito por George Orwell que imaginava como seria viver em um mundo comunista. O país em que ocorre a trama possui três ministérios. O da paz é ironicamente responsável pela guerra, o do amor, pela ordem interna, e o da verdade controla as versões oficiais da história. Dentre as suas tarefas estava a de modificar as narrativas históricas registradas em todo o tipo de documento (jornais, livros, fotografias, etc.)


Não há em qualquer estado conhecido uma estrutura com capacidade para empreender uma tarefa semelhante ao do ministério da verdade, conforme descrito por Orwell. Penso inclusive que esse tipo de instituição seja desnecessária nos dias de hoje. Se passearmos pelas redes sociais, sites de notícias, blogs, dentre outros, veremos que as pessoas vendem sua ficção o tempo todo. O mais interessante é ver o mesmo material como base para pensamentos completamente opostos.


Outro fato interessante e digno de preocupação é como a narrativa sobre o Regime Militar se modificou nos últimos anos. O consenso era de que o período dos Generais-presidentes deveria ser chamado de ditadura. Era considerada uma ditadura brutal e sangrenta. Isso até começarem a comparar com outros regimes autoritários contemporâneos ao nosso. A partir daí, passou-se a considerar a ditadura militar como uma ditadura light.




Após algum tempo, alguns começaram a considerar que só houve ditadura no Brasil a partir do AI-5, em 1968. Os defensores dessa tese argumentam que nenhuma ditadura convive com eventos como os Festivais de Canção realizados até aquele ano.


A fase seguinte é a mais surpreendente de todas. Surgem os defensores da ideia de que o Brasil nunca viveu uma ditadura militar mas um militarismo vigiado. O mais espantoso disso tudo é que os personagens dessa trama mudam radicalmente de papel. Os que lutavam contra os militares e pela democracia deixaram de ser heróis para serem terroristas e os protagonistas de cenas violentas contra civis, muitas vezes inocentes, são vistos como heróis nacionais.

Diante de evidências como estas fica quase impossível distinguir fatos e versões. Fico com a compreensão da psicanálise a respeito da interpretação dos sonhos. Para Freud e seus discípulos mais fiéis a narração de um sonho se constitui na sua primeira interpretação. No caso de nossas histórias oficiais, os fatos se transformam em versões quando são narrados. Como só há fato quando o mesmo é narrado, podemos reafirmar que nós e nossa história vivemos de ficção em ficção.

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